Comigo não era diferente, até que, em meados de abril deste ano, meu querido amigo e colega de pedais Isac Chedid Saud Filho, de Caxias do Sul, postou nas listas sua intenção de participar de uma desconhecida prova de randonneurs na Itália: 1001 Miglia, a mais longa prova Randonnée da Europa e uma das de maior altimetria.
Foi o suficiente para que fosse direto ao site www.1001migliaitalia.it, e, em menos de 30 minutos, a decisão estava tomada: esta era a prova dos sonhos, nada parecia ser mais impressionante e desafiador.
Vencida a primeira etapa, a próxima foi a aquisição das passagens (minha e da Joana) Porto Alegre – São Paulo - Milão e do seguro saúde (exigência da organização da prova e também para ingresso na Europa).
O Isac, ao mesmo tempo, tomava as mesmas providências em Caxias do Sul.
A próxima providência, também exigência da organização, seria a obtenção de um Atestado Médico, emitido por médico do esporte, constatando a habilitação para a prática de ciclismo de longa distância. Aproveitei e, junto com o Isac, fizemos uma série de testes, inclusive espirometria com avaliação do VO2 no setor de medicina do esporte na UCS (Universidade de Caxias do Sul).
Pronto, agora era só escanear e remeter os documentos (comprovante de pagamento da taxa + seguro saúde + atestado médico) por e-mail para Fermo Rigamonti (diretor da prova) e estava efetivada a inscrição.
Com a ida da Joana e da Raquel (esposa do Isac) teríamos também a grande vantagem de termos um carro de apoio. Foi locado em Milão um espaçoso Fiat Ulysse, de 7 lugares.
Antes da compra das passagens tornou-se necessário a escolha das datas de saída e chegada ao Brasil. Com a prova ocorrendo entre 16 e 22 de agosto, o ideal seria chegarmos não mais que três dias antes e posteriormente fazermos algum turismo pela Itália. Entretanto, em função do aniversário de minha filha mais nova, Cristina, em 27 de agosto, resolvermos embarcar dia 7 e fazer o turismo de 8 à 13 e de 23 à 25 de agosto.
Datas acertadas, partimos para a reserva de hotéis e planejamento do turismo: dia 8 em Milão - Hotel Dei Cavallieri, partida de trem Milão - Roma dia 9 (800km em míseras três horas) e reserva no Hotel Di Petris em Roma de 9 à 11. Partida para Veneza dia 11 à noite em trem com camas e chegada na cidade-mar dia 12 pela manhã. Veneza foi o único local que não havíamos reservado hotel, mas foi fácil conseguir. Saída de Veneza para Milão dia 13 pela manhã e chegada em Nerviano (local da prova à 26km de Milão) ao meio-dia no Poli Hotel, um confortável 4 estrelas indicado pela organização e distante 3km da largada.
Montagem da bike em dia 13 à tarde e muita comida e descanso até 16 à noite.
Turismo sem local definido de 23 à 25 de agosto. Acabamos por ir à Cremona (cidade de nascimento de meu bisavô) e Padova onde situa-se a Basílica de Santo Antônio, do qual a Joana é devota.
Retorno ao Brasil dia 26, com chegada dia 27.
Assim ficou definido o planejamento e ocorreu exatamente como previsto, sem contratempos.
O treinamento de pedal foi complementado com três sessões semanais de Pilates. Para que nãos sabe, o Pilates fortalece muito a musculatura abdominal e tonifica os músculos em geral. Desde quando iniciei em 2004, os melhores momentos que tive no pedal estão associados à relização do Pilates.
Para fechar, algumas corridas leves de 7 à 10km, 2 à 3 vezes por semana.
É claro que problemas acontecem, entretanto, temos condições de minimizá-los com uma boa manutenção e prevenção dos equipamentos.
Peças reserva levadas na bolsa de bagageiro: pneu 700x23, corrente, 6 câmeras, raios dianteiros e traseiros (tamanhos diferentes), rolamentos para os cubos.
Chegamos dia 8 em Malpensa por volta das 13:30, horário local. Após a passagem pela imigração, fomos diretamente para as esteiras aguardar as bagagens. Tudo certo, todas chegaram. Na sala de desembarque, Gaetano já estava no aguardo com uma enorme placa 1001 Miglia.
Fomos extremamente bem recebidos. Gaetano, um senhor de 72 anos, aparentando 60, de fácil comunicação, levou-nos para sua casa, onde fomos brindados com um típico almoço italiano (massa, pão, salames, antepastos e prosseco para o brinde) cuidadosamente preparado por sua irmã Giovanna (Joana em italiano) e Giuseppina, sua prima, duas adoráveis senhoras. De quebra, fui presenteado por Gaetano com uma Maglia Rosa, a camisa utilizada pelo ciclista líder do Giro D'Itália. Esta recepção veio à tornar-se, para mim e para Joana, a mais grata lembrança que tivemos desta viagem. Estarmos em um novo país e sendo recebidos por pessoas totalmente desconhecidas daquela maneira realmente nos emocionou muito.
Ficamos grandes amigos de Gaetano, Giuseppina e Giovanna. A recepção inicial repetiu-se no nosso último dia, 25 de agosto, com o almoço de despedida.
O Kit continha a placa de identificação (a minha foi 202), uma camisa 1001 Miglia, passaporte e o road book: um livro plastificado com todas as etapas e todas as direções à seguir, tal qual um mapa de navegação.
Havia uma mesa para cilistas italianos e outra para ciclistas estrangeiros, de 42 países diferentes.
Após a retirada dos kits fomos cadastrar o veículo para o apoio. Preenchemos um formulário e recebemos um adesivo grande para ser colocado no vidro.
Havia também um setor para a retirada de 2 grandes sacolas numeradas com o número do participante, os "bagdrops", para colocação de roupas e outras utilidades à serem disponibilizadas em dois pontos de controle.
Duas grandes bandeiras 1001 Miglia ficavam à disposição dos participantes para assinatura.
Quanto à questão roadbook versus GPS, cabe aqui alguns esclarecimentos: alguns setores da organização do 1001 Miglia são contra à utilização de GPS por entenderem que o randonnée é uma prova auto-sustentável e que o participante deve auto-orientar-se pelo mapa impresso. Outros setores veem o GPS com bons olhos e gostariam de colocar o arquivo eletrônico também como oficial.
Na prática, utlizei direto o GPS e o trajeto apresentou poucas diferenças em relação ao roadbook oficial. O uso do GPS simplifica a navegação e poupa perda de tempo com paradas para a interpretação da mapa. Tive alguns problemas apenas na saída do último PC (Castelania) onde o arquivo GPS não correspondia com o trajeto correto.
104km, 104km acumulados
Pontualmente às 21:00 largou o primeiro pelotão com 30 cilistas e assim, sucessivamente, era liberado um grupo à cada cinco minutos. Grande número de pessoas acompanhavam e aplaudiam à cada largada.
Ao aproximar-se da linha de largada, nossa carta de rota foi carimbada e passado o cartão magnético que abastecia o site. Largamos às 21:45, no décimo pelotão. Tempo seco e temperatura agradável, em tormo de 18°C.
Nosso pelotão girava em um ritmo rápido. Eu e o Isac nos posicionamos na primeira parte do grupo e seguimos o ritmo forte inicial. Pouquíssimo vento, temperatura agradável e estradas perfeitas levavam a média para 32km/h. No meio desta etapa uma surpresa: um grande buraco no meio da estrada foi a causa de alguns pneus furados. Por sorte passamos ilesos e logo alcançamos dois grupos que partiram anteriormente.
Rapidamente, em cerca de 03:20 chegamos à FOMBIO, PC 01 (104km), um controle apenas de passagem, sem estrutura de alimentação. Pelo grande número de ciclistas próximos, neste PC e no PC 02, o passaporte foi apenas carimbado, não tendo sido marcado o horário de chegada.
84km, 188km acumulados
83km, 271km acumulados
A chegada foi às 07:35 do dia 17. No PC, uma boa estrutura de alimentação: água, sucos, massa, arroz, frutas, etc. Aproveito para comer bastante, completar a mochila de hidratação com água e as caramanholas com isotônico. Fico em torno de uma hora no PC e saio com o Isac, que logo avança novamente.
120km, 391km acumulados
O PC é um grande restaurante no qual a organização disponibilizou um ticket referente à um prato de massa.
Um pouco cansado pelo sol escaldante fico em torno de uma hora e meio parado. Prestes à sair, o Isac pede para aguardar para ir ao banheiro, aguardo por ele cerca de 15 minutos.
Partimos agora para o última fase do dia, a planície ficava para trás e iniciavam-se as longas etapas de montanhas, a hora da "onça beber água".
95km, 486km acumulados
Saí de Faenza junto com o Isac, que num piscar de olhos disparou à frente. Logo perdi contato visual. Passei à pedalar sozinho, seguindo as orientações do GPS e também de olho nas setas pintadas no asfalto, que davam-me a certeza de estar na rota certa.
No meio deste trajeto passou por mim, pela primeira vez, nosso carro de apoio, pilotado pela Joana e Raquel. As duas haviam pernoitado em Nerviano (local da largada) e iniciavam sua longa jornada de acompanhamento a mim e ao Isac.
Procurando poupar-me para o dia seguinte subi em giro baixo levando cinco horas e meia para concluir a etapa. Cheguei em Dicomano ao anoitecer (20:15), bastante cansado.
Joana aguarda-ve com um suculento prato de spagetti ao suco, dei algumas garfadas mas estava bastante cansado do forte ritmo do primeiro dia. Só queria dormir. Sabia que o pior estava por vir, mas ao final da prova, constatei que aquela chegada em Dicomano acabou sendo meu momento de maior cansaço em todo o giro.
Uma surpresa ao chegar foi o ausência do Isac, que chegou cerca de três horas depois. Ficamos sabendo em sua chegada que perdeu-se no início da etapa e teve sua corrente arrebentada na subida. Entretanto tudo ok com ele, continuava firme.
O PC era um ginásio que oferecia duchas quentes muito boas e colchonetes simples. Após um bom banho, dormi por volta de quatro horas, das 21:30 às 01:30, o sono foi muito reparador. A Joana e Raquel dormiram no parte da noite no Ginásio e parte no carro.
Acordei, arrumei minhas coisas, e parti para o segundo dia de pedal (18/08) às 02:00. O Isac, que chegou mais tarde, ficou mais tempo dormindo.
No planejamento do dia, quatro etapas à cumprir (PC's 06, 07, 08 e 09), 302km, com a 06 e 09 sendo as mais duras.