quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Relato do Brevet 1001 Miglia – Segunda Parte

RELATO
Brevet 1001 Miglia
Nerviano – Itália
16 a 22 de agosto de 2010
por Rubens P. Gandolfi
Segunda Parte do Relato
DICOMANO PC05 - CHIUSI DELLA VERNA PC06
74km, 560km acumulados
A temperatura às 02:00 era bastante agradável. Tomei o cuidado de sair com um grupo para evitar erros de rota. A etapa era uma das mais duras da prova: subimos, do km 5 com pouco mais de 100m de altitude ao km 22 com pico máximo de 920m. Foram 17km de puro esforço, minimizado pela brisa da madrugada e pelo sono reparador.
Do km 22 ao 50, alívio geral e descidas fortes até aproximadamente 350m de altitude.
Do km 50 ao 74, novo sofrimento, com subidas sem descanso até a chegada do PC, com mais de 950m.
Chiusi Della Verna é um local belíssimo, um mosteiro encravado nas montanhas, muito antigo. O PC oferecia boas condições de alimentação, com massa, risoto, frutas, refrigerante, etc. A etapa foi bastante dura e a média, mesmo com a descida, não passou de 12km/h.
Fiquei por lá em torno de 50 minutos e logo saí para a fase 7, que seria mais amena, apesar do sol forte.
CHIUSI DELLA VERNA PC06 - PASSIGNANO/TRASIMENO PC07
106km, 666km acumulados
Etapa bem mais amena que a anterior, marcada inicialmente por rápido declive (pequenas subidas no meio) do km 0 com 950m ao km 35 com 300m de altitude aproximadamente.
Do km 35 ao 87, trecho plano, com nova forte e curta subida do km 87 (300m) ao km 92 (600m). Rápida descida do km 92 ao 98 e plano até o PC em Paissignano/Trasimeno, uma bela cidade banhada por um imenso lago.
O calor era insuportável, mas Joana já havia chegado e descoberto um restaurante excelente, bem próximo ao PC, onde puder acabar com a fome de audacioso.
A etapa foi cumprida em tormo de cinco horas e meia e a velocidade média do trecho subiu para próximo de 19km/h.
A boa comida, a beleza do lugar e a presença da Joana fizeram-me ficar por volta de uma hora e dez minutos, sem vontade de partir. Entretanto, eram necessárias cumprir mais duas etapas no dia, parti pouco antes das 16 horas, infelizmente sem ver a chegada do Isac.
PASSIGNANO/TRASIMENO PC07 - TODI PC08
68km, 734km acumulados
Etapa curta, sem grande subidas, mas com sobe/desce constante. Sem muitos sobressaltos e poupando energias, cheguei às 19:32. Procurei ser rápido no PC, saindo 20 minutos depois para o destino final do dia: BOLSENA.
TODI PC08 - BOLSENA PC09
54km, 788km acumulados
Etapa curta e aparentemente não tão difícil, acabou por tornar-se uma das mais duras da prova. O cansaço do dia aliado à um vento contra e asfalto irregular deixou tudo complicado. Após uma descida constante nos primeiros 5km, sobe e desce do km 5 ao 27 e daí, forte subida de 0m à 580m no km 47 com descida até 340m no km 54.
A chegada em Bolsena é precedida de uma descida em caracol, com inúmeras curvas fechadas, de tontear. O local é um balneário (lago) muito frequentado e estava lotado de turistas.
Os 54km foram cumpridos em sofríveis três horas e meia, cheguei às 23:24 exausto e, para minha surpresa, o PC era horrível: acanhado, pequeno, sem condições para repouso. Por sorte, Joana e Raquel já haviam chegado e imediatamente conseguiram um hotel muito bom e próximo. Foi a salvação. Tomei um bom banho, comi muito pouco (quando fico muito cansado não tenho fome, não adianta insistir, prefiro comer depois).
Finalizado o segundo dia, com as metas cumpridas, dormi um bom sono por aproximadamente quatro horas (das 00:30 às 04:30), arrumei tudo e parti por volta das 05:00. Mais uma vez não consegui falar com o Isac, que estava com previsão de chegada às 04:30 mas ficara em um quarto separado com a Raquel.
BOLSENA PC09 - POMONTE PC10
71km, 859km acumulados
Iniciei o terceiro dia, que, conforme meu planejamento, seria o mais curto da prova, com apenas três etapas e 202km à percorrer. A curta distância permitiria uma chegada cedo ao PC-dormitório com boas horas de sono e uma saída cedo para enfrentar as quatro etapas do quarto dia.
Esta etapa de 71km não mostrou-se fácil, com uma boa subida do km 12 ao 22 (330 à 620m), forte descida do km 22 ao 32 e sobe-desce até o km 71 do PC.
Cheguei às 08:40 com uma boa média: 19,3 km/h.
O PC de Pomonte era muito bem estruturado, com alimentação farta e local espaçoso. Aproveitei e fiquei em torno de uma hora por lá. Comi bastante para repor o que não havia comido na chegada de Bolsena.
POMONTE PC10 - MONTALCINO PC11
77km, 936km acumulados
Saí às 09:40, já sob forte sol, para Montalcino. A etapa de 77km revelou-se bastante dura em função do calor, piso acidentado na primeira parte e fortes subidas.
Do km inicial ao km 12 subi de 140 à 560m, mantendo esta altitude em sobe-desce do km 12 ao 22. Após, forte descida até 120m no km 28 e nova escalada até 300m no km 45. Sobe e desce até o km 66 e, a partir daí, dura subida até 600m do km 77 de Montalcino.
Na fase inicial da etapa passei pelo PC-Surpresa, uma tenda armada entre "não-sei-aonde” e “lugar-nenhum", onde foi colado um selo em meu passaporte. Cumprida mais esta etapa.
Pouco depois, em função do piso irregular, furei meu primeiro e único pneu. Na vontade de deixar o pneu com bastante pressão acabei forçando e quebrando a tampa do ventil, o que teve de ser reparado posteriormente em Motalcino com a substituição da câmera.
A chegada em Montalcino foi extenuante, com calor passando dos 35°C e fortes subidas. A presença de parrerais belíssimos com uvas maduras e a presença próxima da Joana e da Raquel no carro de apoio amenizaram a tarefa. As duas acabaram por roubar alguns cachos da fruta (fotos comprovam o fato).
Montalcino robou a cena: um lindo vilarejo medieval muito frequentado por franceses e europeus em geral, era um local acolhedor e daqueles que convidavam à ficar. Cheguei exausto e Joana rapidamente providenciou uma deliciosa pizza, rapidamente devorada com uma spina (chopp) de 400ml.
O PC não apresentava estrutura de alimentação: cada um por sí.
Aproveitei o cenário, corrigi o problema do ventil, recalibrei o pneu com a bomba de pé do carro de apoio e acabei ficando, propositalmente, por uma hora e meia lá. Raquel e Joana permaneceram no PC aguardando o Isac, que chegou próximo das 19:00.
Tudo acertado, parti às 16:42 para o PC-dormitório do dia: Castelnuovo/Berardenga.
MONTALCINO PC11 - CASTELNUOVO/BERARDENGA PC12
54km, 990km acumulados
Trajeto curto, de baixa altimetria, com alguns "sobe-desce".
Nesta etapa, uma peculiaridade preparada pela organização: um trecho-alternativo de 14km denominado "STRADE BIANCHE EROICA" em estrada-de-chão e pedregulhos, em homenagens aos antigos competidores e randonneurs. Como o trecho era alternativo e estava com muito peso e pneus de speed, resolvi não arriscar, segui pela rota original.
Bem alimentado e motivado para chegar cedo ao PC, cumpri a etapa em duas horas e meia, com média próxima dos 22km/h. Cheguei em Castelnuovo às 19:12, ainda claro. O local apresentava boa estrutura, um ginásio também com boas duas e colchonetes para dormir.
Comi um pouco, tomei banho, conversei com Joana e fui rapidamente dormir às 20:30 para sair cedo no dia seguinte. Estava feliz por cumprir o planejamneto inicial, estava chegando sempre para dormir nos principais PCs-dormitórios e pedalando sempre junto com a maioria dos ciclistas: em todos PCs que parava não havia menos que 60-70 participantes, ou seja, estava "no bolo".
Outra boa notícia: ao acordar consegui falar com o Isac que chegara, tomara banho e preparava-se para dormir. Ele também estava na prova.
Quanto aos randonneurs cabe aqui uma observação: a grande maioria apresentava um vasto currículo de provas, com vários PBPs, LELs e até mesmo Randonneur-USA costa-costa 5000km. A forma de pedalar e os equipamentos utilizados comprovavam minha observação. O índice de desistência foi muito pequeno e não haviam descontentamentos, mesmo em PCs com pouca ou nenhuma estrutura. O pessoal parecia "acostumado" à enfrentar tais situações.
CASTELNUOVO/BERARDENGA PC12 - MONTAIONE PC13
95km, 1085km acumulados
Consegui dormir bem, das 20:30 às 01:00, saindo para o quarto dia de prova à 01:30, com a previsão de cumprir quatro etapas e 342km.
Largando cedo, na madrugada e sob temperatura amena, a tarefa foi facilitada ao encarar esta dura etapa. Tive a sorte de sair também com um grupo bastante homogêneo de randonneurs, com pedal constante e com muito boa orientação, o que facilitou tudo.
Após um sobe-desce inicial de 20km, encaramos uma boa subida de 340m até 600m do km 35, descida até o km 52, sobe-desce até o km 70 e novas subidas de 0 à 480m no km 88. Então, descidas até 340m no km 95 de Montaione.
Cheguei às 05:45, com 22,4km/h de média. Tenho poucas recordações deste PC, por meus controles fiquei 50 minutos neles e não lembro de sua estrutura.
Saí às 06:35 em direção à Montecatini-Terme.
MONTAIONE PC13 - MONTECATINI TERME PC14
53km, 1138km acumulados
Etapa curta, 53km, com apenas duas subidas leves e o restante do percurso plano. Para facilitar ainda mais, nos primeiros quilômetros uma forte descida. Verdadeiro "mamão-com-açúcar" em comparação às etapas anteriores. Aproveitei e cumpri o trajeto em 02:15, com média próxima dos 24km/h.
O PC estava situado em um bar que não estava preparado para receber os ciclistas. Com muita sorte consegui comprar um café, um suco e um salgado. O pessoal estava ainda em fase de preparação da comida.
Quando estava por partir tive a grata satisfação de encontar o Daniel Sikar que estava chegando, após sair com quatro horas de atraso de Nerviano. Conversamos um pouco, o suficiente para reconhecer em Daniel uma grande pessoa e um randonneur experiente. Daniel, o convite está feito: precisas vir ao Rio Grande do Sul pedalar conosco.
Daniel é brasileiro e divide seu tempo entre São Paulo e Londres e recentemente concluiu o LEL. Infelizmente não seguir com ele, que queria dormir um pouco no PC.
A conversa prolongou meu tempo de parada em 01:15, mas foi válido. Parti às 10:05 em direção à Aulla-Pallerone.
MONTECATINI TERME PC14 - AULLA-PALLERONE PC15
120km, 1258km acumulados
Uma das etapas mais longas da prova, com 120km, trajeto relativamente plano com uma única e forte subida, iniciando-se gradual e leve à partir do km 40 (100m) ao 75 (340m) e tornando-se forte do km 75 ao 98 (700m). Do km 98 ao 120 (PC) descida forte até 80m. Mesmo não sendo dos piores trechos, sofri muito nesta etapa com o calor que parecia ser o maior da semana.
A forte subida lembrava muito a Serra do Rio do Rastro em Santa Catarina. Neste mesmo trecho de subida, em que pedalei sozinho, passei por minúsculos vilarejos muito antigos e com a típica arquitetura italiana colonial. Em uma destas localidades, por volta das 14:00 parei para comer duas gigantescas fatias de pizza e duas spinas de cerveja com 400ml cada. Energia pura para retorno ao pedal.
Não gostei da chegada em Aulla: pedalávamos por uma estrada estreita que margeava a cidade, com muito movimento. Apressei-me em chegar ao PC para iniciar logo a última etapa do dia.
O controle era em um posto de gasolina, sem estrutura e apenas com o carimbo da prova à disposição: os próprios ciclistas carimbavam seu cartão e anotavam o horário. Encontrei alguns amigos neste PC que vinham pedalando mais ou menos no mesmo ritmo que eu, entre eles o Avi, um israelense naturalizado inglês que conversava muito comigo e o Isac desde nossa chegada no Hotel Poli, em Nerviano.
A etapa foi cumprida em longas 07:50, com média de 15,3km/h. Saí rapidamente de Aulla, às 18:25, já com uma certa dose de fome.
Passei também a ter uma certa preocupação com a Joana e a Raquel pois não haviam passado por mim em nenhuma hora do dia. Estar em um país diferente, pilotando um carro diferente, em estradas sinuosas, eram motivos suficientes para tal apreensão. Entretanto, no início da prova ficou acertado de que o carro de apoio daria prioridade ao ciclista que estivesse mais atrasado, no caso o Isac. Se isto me acalmava, por outro lado trazia nova inquietude: poderia significar que meu patrício tinha ficado ainda mais para trás, criando uma distância maior que tornava-se impossível de ser preenchida pelas meninas para atendimento simultâneo.
Esta apreensão durou até o início da tarde do dia seguinte (último dia), quando as meninas vieram ver minha chegada e confirmaram o atraso do Isac em função de novos erros de percurso.
AULLA-PALLERONE PC15 - DEIVA MARINA PC16
74km, 1332km acumulados
Nos primeiros quilômetros ainda muita agitação de trânsito e comércio, com bares de happy hour sem alimentação consistente. Fui deixando Aulla preocupado com a comida, estava com fome.
Quase na saída da cidade, já conformado em encarar boa parte do trecho sem comida, avisto uma pequena pizzaria que vendia pizzas à quilo à moradores locais. Festa!!! Vários pedaços+cerveja+focaccia para levar na bolsa e estava preparado para enfrentar a última etapa do dia.
Lamentei muito fazer esta parte à noite, pois tratava-se de um dos mais belos trechos da prova. Iríamos subir muito e descer em direção à Leviano, uma praia às margens do Mediterrâneo. Após, nova subida com grande inclinação, de modo à ver o oceano pequeno ao longe.
Descrição do trajeto: relativamente plano do km 0 ao 30, com forte subida do km 30 (130m) ao km 41 (530m), descida radical (doía as mãos de apertar o manete do freio, pois eram curvas em cotovelo) do km 41 (530m) ao km 50 (0m, nível do mar - praia), nova forte subida do km 50 ao km 57 (400m) (visão do oceano sumindo), descida até 200m no km 65 e subida estúpida de 170m em 2km (do 65 ao 67). Nova descida radical do km 65 ao 74, com chegada em Deiva Marina ao nível do mar.
A alimentação e a chegada da noite deram-me novo ânimo para completar esta que foi a fase decisiva da prova. Subidas duríssimas e descidas que exigiam o máximo de atenção tornavam o techo desafiador.
Logo encontrei um cilista espanhol com quem havia conversado anteriormente. Ele pilotava uma Colnago e era um "cavalo" em escaladas, tinha quase 2 metros de altura, tenho foto com ele. O espanhol estava um pouco perdido em função do road-book e juntou-se à mim que estava firme com meu GPS.
Procurei acompanhar o ritmo do espanhol nas escaladas e não fiz feio: o treino-massacre de 4 dias de subidas começava à trazer resultados.
Chegamos juntos à Deiva Marina às 00:10 do dia 21, 74km cumpridos em 5h e 45min de pedal e média próxima dos 13km/h, muito bom para aquele estágio.
A chegada em Deiva era marcada por diversas conversões, cruzamentos e retornos. Ao chegar ao PC, uma grande decepção: o local tinha pouca opção de alimentação, colchonetes em número insuficiente e dificuldades até mesmo de espaço para deixar a bike.
Bastante cansado mas sem fome, sem colchonete para dormir, sem roupa limpa e material para tomar banho, que estava no carro de apoio que não chegou, não via outra alternativa senão dormir rapidamente. Preparava-me para deitar no chão de uma sala onde estavam pelo menos 50 randonneurs, quando a sorte novamente chegou: dois ingleses acordaram e prepravam-se para a saída.
Apesar de todas as adversidades do PC, estava satisfeito e pouco incomodado com a situação de não poder tomar banho. Afinal de contas, praticamente todos estavam ali na mesma situação. A satisfação também vinha de um motivo bem forte: ao chegar à Deiva e concluir o quarto dia de prova absolutamente dentro do planejado, tinha a certeza de que o 1001 Miglia não escapava mais. Teria boas cinco horas de sono, apenas mais três etapas e 293km à cumprir com poucas montanhas à escalar. De quebra, chegaria no sábado à noite, cerca de 12 à 15 horas antes do prazo máximo de conclusão, domingo 12 horas.
O planejamento da festa já começava e o ânimo redobrava.
Final da Segunda Parte do Relato
Na Terceira e Última Parte: A CHEGADA E OS AGRADECIMENTOS

Um comentário:

  1. Está valendo Rubens Pinheiro Gandolfi, grande e minucioso relato. Aguardo o próximo capítulo. E pode deixar que vou baixar sim, para um pedal, quiçá um da série para validar a entrada no PBP 2011. Gostei dos teus relatos do pedal pelo Uruguai, aquele dia em Montecatini Terme. E gostei muitíssmo da cara da Serra do Rio do Rastro, Santa Catarina. Parece não ser uma coincidência, que o Murilo Fisher é daquele estado! Ainda que ele seja um sprinter, a serra tem muito a cara do "Giro".

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